Indescrítivel!!! Como tal, vou tentar:
A noite foi mal dormida, alevantámos a carcaça da cama eram 6:45. A vontadinha era mínima mas já nos tínhamos comprometido. Pequeno-almoço reforçado com um batido de proteínas e gingas carregadas nas respectivas carroças e aí vamos nós. O cafézinho foi na bomba do aeroporto. Para quem não sabe, Alte é no meio do Nada. Estão a ver o Nada? Então é bem lá no meio! Loulé-Salir-Benafim-Alte, sempre com a Rocha da Pena a marcar presença ao nosso lado. Começamos a recear a saúde das nossas pernas. Se de carro já farta, de bike então é que vai ser bom. Arranjámos um lugar para estacionar bem em cima do passeio como convém e equipámo-nos a rigor mesmo no meio da estrada com um trânsito infernal, bikes, motas, carros, pesados, tudo passava na boa com um código improvisado naquele bocado de estrada. Calção de lycra almofadado, camisola, meias com meio cano, sapatos, lenço por baixo do capacete, gafas escuras (mais por causa dos mosquitos que do Sol), luvas e penso à jogador da bola e ei-los prontos para esse esgravatanço Serra acima Serra abaixo.
Ora 1500 BTTistas correspondem a 1500 bikes. A confusão era enorme e na hora da partida, já os primeiros estavam a metade da volta à aldeia, os que estavam a 20 metros da partida ainda não se tinham mexido! E lá fomos.
Os primeiros quilómetros foram na descontra. Giro na aldeia, numa partida digna da Volta a Portugal, com os habitantes à porta de casa a aplaudirem e a encorajar os ciclistas. Depois os estradões de terra batida. O solo era barrento e argiloso mas estava seco e rolava-se bem. Aqui e ali umas poças sobreviventes das últimas chuvadas onde os mais afoitos aproveitavam logo para se sujar. Começavam-se a ouvir as primeiras piadas: "Já estamos sujos, podemos voltar e almoçar" ou "Aiaiai, não me sujem que a roupa é nova!". Ao Km 7 começa uma subida em alcatrão pouco simpática, era o começo das hostilidades como quem diz que dali para a frente era tudo pior. A primeira selecção é feita e o grupo fica esticado (disperso será talvez a palavra mais indicada). No começo da subida da Rocha da Pena, na passagem do alcatrão para a terra, um grupinho da barbesa não vai atento e segue em frente no estradão de terra em vez de virarem num singletrack técnico no meio de árvores e arbustos que parecia que nos queriam comer. De repente, sentindo-me perdido no meio de umas centenas, dou por mim em "terceiro da geral" já que foram uns senhores que iam à minha frente quem deu o alerta: "Pessoal, as fitas estão para este lado, o caminho é p'ráqui!". A paisagem era deslumbrante: no sopé da Rocha da Pena um grande estradão de terra seca, cada um que passava deixava um rasto de poeira a cada curva dada com mais bisga. À esquerda, bem lá em cima, um grupo aí de 150 a discutirem, uns a seguirem, outros a voltar para trás, outros a aproveitar para fazer a primeira paragem do dia e olhar a paisagem onde nós, cá em baixo, passávamos em menos de nada. Este foi, aliás, um dos poucos defeitos colocados na organização, alguns atletas queixaram-se da marcação deficiente do percurso mas eu, como não tenho base de comparação, não achei que fosse tão má, afinal ainda eram milhares de fitas, as setas eram pequenas, sim senhor, principalmente para quem vinha deslargado mas eu só me enganei uma vez e numa prova com 1500 manos há sempre alguém que sabe o caminho.
Na primeira bifurcação, ficam os do Nível 2 e seguem os restantes; muitos paravam à espera dos conhecidos, outros, indecisos, pensavam para que lado haviam de ir, havia os do Nível 2 que sentiam que poderiam fazer mais, e os de Nível 3 e 4 que começavam a pensar que o melhor seria ficar já por ali. Por esta altura a minha companhia era um jovem que dizia estar inscrito no nível 4 mas provavelmente ficar-se-ia pelo 2. Disse-lhe que o 2 era pouco mas não sei se o consegui convencer, perdemo-nos na subida seguinte e nunca mais o vi. Nessa primeira bifurcação entre níveis havia um ribeiro. Nada de espantar, portanto, a quantidade de pessoal de um e de outro lado a tirar fotos, BTTistas inclusive. As quedas mais que certas e o efeito da água quando se passa em velocidade dão sempre umas belas kodaks.
Lá continuamos e nada de Zona de Abastecimento. Estava marcada para o Km 20 e nada. Pessoalmente, sentia-me indignado, enganado. Sabia que mais tarde ou mais cedo a encontraríamos mas se era aos 20 que diziam que estava era aos 20 que devia estar. Em vez disso subidas de morte, autênticas paredes, pessoal a descer-se e a caminhar enquanto se reclamava: “O ano passado não era assim!” “Estes gajos não sabem fazer caminhos a direito” “Algarve é praia... dizem eles!”. Uma vez lá em cima, passagem no moinho e logo a primeira descida, assinalada como perigosa. Tem muito que se lhe diga isto: para mim houve mais uma ou duas tão ou mais perigosas, simplesmente mais curtas e só o facto de estar lá o sinal ainda mete mais medo. Quem pensa que para baixo todos os santos ajudam devia fazer uma descida daquelas. Muitas e grandes pedras soltas, curvas apertadas e ramos a atravessarem-se no caminho, muito mas muito giro. Lá ia o Roma com dois dedos em cada manete, sempre com muito cuidado, o que não quer dizer que não falhasse uma cabeçada nas fitas penduradas, todos e quaisquer ramos de árvore atravessados e os maiores pedregulhos, é claro. E lá me deixava ir quando via o fim da curva. A meio, um cotovelo à direita era suicida. O senhor que ia à minha frente foi a direito e eu atrás dele. O jovem motard da organização dizia-nos “Esta tem escapatória, é mesmo para isso que serve” enquanto ao lado dele a primeira vítima do dia que vi, um dorsal amarelo a dar à bomba, muito mal-humorado. No fim da descida uma ambulância, felizmente sem trabalho e igualmente sem água. As míseras duas paletas que a organização lhes tinha dado sumiram com os primeiros. Perguntávamos: “Então e águinha, não há?” e a única resposta que tínhamos era “Lá à frente, mais uns 3 ou 4 km há!”. Rolamos agora no alcatrão e depois de passarmos outro ribeiro a subida até ao Castelo de Salir. Duro, muito duro, demasiado duro. A subida é curta mas com uma inclinação impressionante. Cá de baixo já víamos os sorrisos de quem estava lá em cima, já a beber água fresquinha e a comer as laranjas e bananas fornecidas. Foi aí que o Bibes me passou (tinha ido atrás dos que se enganaram no caminho) e nunca mais o vi. A ZA1 era em plena muralha do Castelo de Salir. A paisagem era, uma vez mais, magnífica, embora o local não tivesse muito espaço, um corredor aí com uns 3 metros de largura. A malta descia-se, uns paravam as máquinas de qualquer maneira, outros quase que punham uma tabuleta a dizer “Não mexer, é feita de Ouro”. Eu fiquei uns 5 minutos, enchi uma das minhas garrafas com água e comi uma barra energética. Dois dedos de conversa depois fazia-me ao caminho, com dois cotas. Um deles tinha uma bicicleta que vale mais que o meu carro, uma Scott Genius de edição limitada em carbono. O outro, tinha uma que vale menos que os pedais da minha, uma Ti Manel aí com uns 20 anos, sem suspensão, de ferro. Isto é que é engraçado nestas provas, vê-se de tudo, e quando digo tudo, é tudo mesmo. Scotts Genius, Treks Fuels, bikes do Modelo e do Intermarché, havia um puto com uma Kona Stinky que se queixava do peso (16 Kg), é caso para dizer: LOL! Havia pessoal de calças de ganga, havia pessoal de chinelos(!!!), sem camisola, sem capacete, enfim, uma maluquice.
A seguir à ZA1, a descida de Salir, primeiro em alcatrão, depois em singletracks, alguns muito técnicos, que ensinam que as pernas doem tanto a descer como a subir, ou talvez mais, já que a força é constante e em simultâneo nas duas pernas, para mantermos o equilíbrio e não deixarmos resvalar a máquina. Algures por aí, antes do fatídico Km 30 a minha primeira e felizmente única queda. Num desses singletracks, havia um muro de pedra à esquerda, e uma pequena ribanceira à direita, nada de especial, mas o suficiente para, a seguir a uma pedra, a roda resvalar num rêgo e afocinhar ribanceira abaixo sem ter conseguido desencaixar os pedais. Tínhamos passado um ribeiro lamacento há poucos metros e já se sabe como é...
Entre os quilómetros 27 e 33 sensivelmente, o terreno era horrível. Estradões largos mas mal definidos, com pedregulhos enormes, raízes e alguma pedra solta eram um inferno para pernas, braços e suspensões. Mais que uma vez preguei com toda a força com o pedal ou o esticador numa pedra e até me doía só de pensar nos estragos.
O quilómetro 30 era numa subida em asfalto maltratado. Sem árvores, com o Sol a bater bem lá do alto, foi das partes mas duras da prova. Contam-se pelos dedos os que vi sentados a pedalar. Um deles era uma rapariga que passou por mim umas 3 ou 4 vezes, sempre sentada a pedalar. Dizia sempre “Deixem passar a menina, com licença, então os cavalheiros não deixam a menina passar?”. E lá ia ela, sempre com a mesma cadência. Estas foram as partes mais duras porque ao desgaste físico junta-se o psicológico, alturas há em que apetece literalmente mandar a bicicleta ao chão, sentarmo-nos na sombra mais próxima a chorar, e/ou amaldiçoar tudo e todos. Foi nesta altura que me apercebi que este desporto é, de facto, o mais masoquista de todos. Interrogamo-nos o que levará 1500 malucos a montar-se num pedaço de ferro de 1500 €, a subir montanhas de terra com 1500 metros de altura e quase 1500 graus de inclinação debaixo de um Sol com 1500 graus Celsius!!!! Acho que só como experiência já vale a pena, depois temos a parte do convívio, faz bem à saúde, etc... mas lá que são precisos uns quantos parafusos a menos, acerca disso que não restem dúvidas! A motivação, essa, é tão importante como as pernas e eu tentava ir buscá-la a tudo, através de uma perspectiva sempre optimista. Se era um velhote que me passava pensava “Eu também consigo”, se era um puto pensava o mesmo. Lembrava-me das imagens do Alp d’Huez e da Senhora da Graça, do Armstrong sobrevivente do cancro e de um gajo que vi um dia pedalar só com uma perna, dizia a mim próprio que aquilo não era nada, que não era tão mau como o estávamos a fazer, que o meu nome do meio é Induráin e que no final do dia um telefonema prometido já serviria como recompensa. Cada algarismo que o conta-quilómetros mudava dava renovada energia, por mais lento que fosse. Cada colega que passava parecia que nos dava um empurrão e cada um que me passava pensava que tinha que ir na roda dele para chegar ao fim mais depressa.
A ZA2 também não estava no quilómetro certo. Segundo a organização estaria aos 30 e fomos encontrá-la aos 37. Imediatamente antes o meu único engano no caminho, fui em frente, distraído, em vez de virar à esquerda. Uns berros de um grupo atrás acordaram-me e perdi só uns 60 metros. Na ZA2 havia rostos animados, o fim estava próximo, o pessoal dos 75 ainda estava a meio e esta era a sua primeira paragem “a sério”. Mais uma barrita de chocolate (já completamente derretida) e duas garrafas de água e lá vamos caminho da meta, ainda a rir com os modos de um velhote de Cuba que não se fartava de elogiar a sua terra, os seus companheiros, o seu Alentejo e a sua Maratona, que decorrerá em Junho, salvo erro. Os últimos quilómetros foram feitos como na parte inicial mas no sentido oposto. O sinal que indicava a meta a 1 Km parecia que nos injectava energia e eis-me de repente, a pedalar em pé na relação mais pesada à entrada de Alte. Os últimos 350 metros eram uma descida em asfalto onde atingi os 54 km/h e onde vi a minha vida toda à frente dos olhos à medida que via a curva a aproximar-se e eu sem curvar. Acho que deixei um rasto de pneu aí com uns 10 metros mas lá me safei. Havia de ter sido bonito, matar-me mesmo no fim e logo no alcatrão, quando tinha tido tantas e tão boas oportunidades com as pedras e as árvores do caminho. Cá em baixo a recompensa, muita gente de sorriso nos lábios a gritar "Força!" , "Parabéns!" ou pura e simplesmente a aplaudir enquanto cortava a meta. Aí, sinal de que realmente isto são coisas de, e para malucos: depois de passar nove décimos do tempo a amaldiçoar aquela terra, aquele percurso e quem o tinha feito, o primeiro pensamento que me passou pela cabeça foi “Tenho que fazer isto outra vez!”. À minha espera estava a minha mãe, a Balé e o Miguel, um puto que me perguntou 50 vezes por que estava na serra, por que caí, por que estava cheio de lama, por que só agora tinha chegado, por que isto, por que aquilo, enfim, por algum razão lhe chamam a idade dos porquês...
Tomado o banho (águinha bem quente por sinal, mais quente só no Alasca) e carregada a bike no carro vamos bater o almoço, uma churrascada, enquanto assistimos a uma demonstração de Trial e Dirt Jump. Visitam-se os standers das marcas e das lojas, trocam-se impressões, pedem-se informações e toca para casa, não sem antes dar uma mirada às fotos e comprar uma do Roma himself numa gáspia brutal direito a um sobreiro.
Se me pedirem para fazer as contas no final, digo-vos que é bastante simples:
Gasta-se: tempo, dinheiro (para doar), paciência, energia, muito suor, muito pneu e muito calço de travão.
Ganha-se: experiência, saúde, músculo, lava-se a vista (e não só com a paisagem, acreditem), uma bela churrascada, conhecimentos de mecânica, amizades, e um mega sorriso nos lábios, para além de um sono dos justos ao final do dia graças a 46.91km em 3:41:15 H de adrenalina pura! Ah, e as belas das cãibras também!
Agora digam-me vocês se, perante isto, vale ou não a pena por apenasmente 10 Euricos?
Para mim, Alte pode ser a segunda aldeia mais portuguesa de Portugal, mas é sem dúvida a mais BTTista. Um belo local para passear e visitar sem ser nestas andanças. Para o ano lá estarei para mais uma Maratona Marafada naquele local que é a tradução de Alto para al-garvio! Uma palavra de agradecimento e parabéns: a todos quantos trabalharam nesta bela organização, malta da Escola Profissional, voluntários, Cruz Vermelha, GNR, etc.; todos os habitantes de Alte, povoações e montes em redor por nos terem acolhido tão bem neste dia Feriado; a todos os BTTistas que participaram tornando este dia inesquecível (afinal foi a minha primeira Maratona e comecei em grande); e ao Bibes e à Sandrine que me fizeram companhia, sem eles não teria ido. AVÉ!
A noite foi mal dormida, alevantámos a carcaça da cama eram 6:45. A vontadinha era mínima mas já nos tínhamos comprometido. Pequeno-almoço reforçado com um batido de proteínas e gingas carregadas nas respectivas carroças e aí vamos nós. O cafézinho foi na bomba do aeroporto. Para quem não sabe, Alte é no meio do Nada. Estão a ver o Nada? Então é bem lá no meio! Loulé-Salir-Benafim-Alte, sempre com a Rocha da Pena a marcar presença ao nosso lado. Começamos a recear a saúde das nossas pernas. Se de carro já farta, de bike então é que vai ser bom. Arranjámos um lugar para estacionar bem em cima do passeio como convém e equipámo-nos a rigor mesmo no meio da estrada com um trânsito infernal, bikes, motas, carros, pesados, tudo passava na boa com um código improvisado naquele bocado de estrada. Calção de lycra almofadado, camisola, meias com meio cano, sapatos, lenço por baixo do capacete, gafas escuras (mais por causa dos mosquitos que do Sol), luvas e penso à jogador da bola e ei-los prontos para esse esgravatanço Serra acima Serra abaixo.
Ora 1500 BTTistas correspondem a 1500 bikes. A confusão era enorme e na hora da partida, já os primeiros estavam a metade da volta à aldeia, os que estavam a 20 metros da partida ainda não se tinham mexido! E lá fomos.
Os primeiros quilómetros foram na descontra. Giro na aldeia, numa partida digna da Volta a Portugal, com os habitantes à porta de casa a aplaudirem e a encorajar os ciclistas. Depois os estradões de terra batida. O solo era barrento e argiloso mas estava seco e rolava-se bem. Aqui e ali umas poças sobreviventes das últimas chuvadas onde os mais afoitos aproveitavam logo para se sujar. Começavam-se a ouvir as primeiras piadas: "Já estamos sujos, podemos voltar e almoçar" ou "Aiaiai, não me sujem que a roupa é nova!". Ao Km 7 começa uma subida em alcatrão pouco simpática, era o começo das hostilidades como quem diz que dali para a frente era tudo pior. A primeira selecção é feita e o grupo fica esticado (disperso será talvez a palavra mais indicada). No começo da subida da Rocha da Pena, na passagem do alcatrão para a terra, um grupinho da barbesa não vai atento e segue em frente no estradão de terra em vez de virarem num singletrack técnico no meio de árvores e arbustos que parecia que nos queriam comer. De repente, sentindo-me perdido no meio de umas centenas, dou por mim em "terceiro da geral" já que foram uns senhores que iam à minha frente quem deu o alerta: "Pessoal, as fitas estão para este lado, o caminho é p'ráqui!". A paisagem era deslumbrante: no sopé da Rocha da Pena um grande estradão de terra seca, cada um que passava deixava um rasto de poeira a cada curva dada com mais bisga. À esquerda, bem lá em cima, um grupo aí de 150 a discutirem, uns a seguirem, outros a voltar para trás, outros a aproveitar para fazer a primeira paragem do dia e olhar a paisagem onde nós, cá em baixo, passávamos em menos de nada. Este foi, aliás, um dos poucos defeitos colocados na organização, alguns atletas queixaram-se da marcação deficiente do percurso mas eu, como não tenho base de comparação, não achei que fosse tão má, afinal ainda eram milhares de fitas, as setas eram pequenas, sim senhor, principalmente para quem vinha deslargado mas eu só me enganei uma vez e numa prova com 1500 manos há sempre alguém que sabe o caminho.
Na primeira bifurcação, ficam os do Nível 2 e seguem os restantes; muitos paravam à espera dos conhecidos, outros, indecisos, pensavam para que lado haviam de ir, havia os do Nível 2 que sentiam que poderiam fazer mais, e os de Nível 3 e 4 que começavam a pensar que o melhor seria ficar já por ali. Por esta altura a minha companhia era um jovem que dizia estar inscrito no nível 4 mas provavelmente ficar-se-ia pelo 2. Disse-lhe que o 2 era pouco mas não sei se o consegui convencer, perdemo-nos na subida seguinte e nunca mais o vi. Nessa primeira bifurcação entre níveis havia um ribeiro. Nada de espantar, portanto, a quantidade de pessoal de um e de outro lado a tirar fotos, BTTistas inclusive. As quedas mais que certas e o efeito da água quando se passa em velocidade dão sempre umas belas kodaks.
Lá continuamos e nada de Zona de Abastecimento. Estava marcada para o Km 20 e nada. Pessoalmente, sentia-me indignado, enganado. Sabia que mais tarde ou mais cedo a encontraríamos mas se era aos 20 que diziam que estava era aos 20 que devia estar. Em vez disso subidas de morte, autênticas paredes, pessoal a descer-se e a caminhar enquanto se reclamava: “O ano passado não era assim!” “Estes gajos não sabem fazer caminhos a direito” “Algarve é praia... dizem eles!”. Uma vez lá em cima, passagem no moinho e logo a primeira descida, assinalada como perigosa. Tem muito que se lhe diga isto: para mim houve mais uma ou duas tão ou mais perigosas, simplesmente mais curtas e só o facto de estar lá o sinal ainda mete mais medo. Quem pensa que para baixo todos os santos ajudam devia fazer uma descida daquelas. Muitas e grandes pedras soltas, curvas apertadas e ramos a atravessarem-se no caminho, muito mas muito giro. Lá ia o Roma com dois dedos em cada manete, sempre com muito cuidado, o que não quer dizer que não falhasse uma cabeçada nas fitas penduradas, todos e quaisquer ramos de árvore atravessados e os maiores pedregulhos, é claro. E lá me deixava ir quando via o fim da curva. A meio, um cotovelo à direita era suicida. O senhor que ia à minha frente foi a direito e eu atrás dele. O jovem motard da organização dizia-nos “Esta tem escapatória, é mesmo para isso que serve” enquanto ao lado dele a primeira vítima do dia que vi, um dorsal amarelo a dar à bomba, muito mal-humorado. No fim da descida uma ambulância, felizmente sem trabalho e igualmente sem água. As míseras duas paletas que a organização lhes tinha dado sumiram com os primeiros. Perguntávamos: “Então e águinha, não há?” e a única resposta que tínhamos era “Lá à frente, mais uns 3 ou 4 km há!”. Rolamos agora no alcatrão e depois de passarmos outro ribeiro a subida até ao Castelo de Salir. Duro, muito duro, demasiado duro. A subida é curta mas com uma inclinação impressionante. Cá de baixo já víamos os sorrisos de quem estava lá em cima, já a beber água fresquinha e a comer as laranjas e bananas fornecidas. Foi aí que o Bibes me passou (tinha ido atrás dos que se enganaram no caminho) e nunca mais o vi. A ZA1 era em plena muralha do Castelo de Salir. A paisagem era, uma vez mais, magnífica, embora o local não tivesse muito espaço, um corredor aí com uns 3 metros de largura. A malta descia-se, uns paravam as máquinas de qualquer maneira, outros quase que punham uma tabuleta a dizer “Não mexer, é feita de Ouro”. Eu fiquei uns 5 minutos, enchi uma das minhas garrafas com água e comi uma barra energética. Dois dedos de conversa depois fazia-me ao caminho, com dois cotas. Um deles tinha uma bicicleta que vale mais que o meu carro, uma Scott Genius de edição limitada em carbono. O outro, tinha uma que vale menos que os pedais da minha, uma Ti Manel aí com uns 20 anos, sem suspensão, de ferro. Isto é que é engraçado nestas provas, vê-se de tudo, e quando digo tudo, é tudo mesmo. Scotts Genius, Treks Fuels, bikes do Modelo e do Intermarché, havia um puto com uma Kona Stinky que se queixava do peso (16 Kg), é caso para dizer: LOL! Havia pessoal de calças de ganga, havia pessoal de chinelos(!!!), sem camisola, sem capacete, enfim, uma maluquice.
A seguir à ZA1, a descida de Salir, primeiro em alcatrão, depois em singletracks, alguns muito técnicos, que ensinam que as pernas doem tanto a descer como a subir, ou talvez mais, já que a força é constante e em simultâneo nas duas pernas, para mantermos o equilíbrio e não deixarmos resvalar a máquina. Algures por aí, antes do fatídico Km 30 a minha primeira e felizmente única queda. Num desses singletracks, havia um muro de pedra à esquerda, e uma pequena ribanceira à direita, nada de especial, mas o suficiente para, a seguir a uma pedra, a roda resvalar num rêgo e afocinhar ribanceira abaixo sem ter conseguido desencaixar os pedais. Tínhamos passado um ribeiro lamacento há poucos metros e já se sabe como é...
Entre os quilómetros 27 e 33 sensivelmente, o terreno era horrível. Estradões largos mas mal definidos, com pedregulhos enormes, raízes e alguma pedra solta eram um inferno para pernas, braços e suspensões. Mais que uma vez preguei com toda a força com o pedal ou o esticador numa pedra e até me doía só de pensar nos estragos.
O quilómetro 30 era numa subida em asfalto maltratado. Sem árvores, com o Sol a bater bem lá do alto, foi das partes mas duras da prova. Contam-se pelos dedos os que vi sentados a pedalar. Um deles era uma rapariga que passou por mim umas 3 ou 4 vezes, sempre sentada a pedalar. Dizia sempre “Deixem passar a menina, com licença, então os cavalheiros não deixam a menina passar?”. E lá ia ela, sempre com a mesma cadência. Estas foram as partes mais duras porque ao desgaste físico junta-se o psicológico, alturas há em que apetece literalmente mandar a bicicleta ao chão, sentarmo-nos na sombra mais próxima a chorar, e/ou amaldiçoar tudo e todos. Foi nesta altura que me apercebi que este desporto é, de facto, o mais masoquista de todos. Interrogamo-nos o que levará 1500 malucos a montar-se num pedaço de ferro de 1500 €, a subir montanhas de terra com 1500 metros de altura e quase 1500 graus de inclinação debaixo de um Sol com 1500 graus Celsius!!!! Acho que só como experiência já vale a pena, depois temos a parte do convívio, faz bem à saúde, etc... mas lá que são precisos uns quantos parafusos a menos, acerca disso que não restem dúvidas! A motivação, essa, é tão importante como as pernas e eu tentava ir buscá-la a tudo, através de uma perspectiva sempre optimista. Se era um velhote que me passava pensava “Eu também consigo”, se era um puto pensava o mesmo. Lembrava-me das imagens do Alp d’Huez e da Senhora da Graça, do Armstrong sobrevivente do cancro e de um gajo que vi um dia pedalar só com uma perna, dizia a mim próprio que aquilo não era nada, que não era tão mau como o estávamos a fazer, que o meu nome do meio é Induráin e que no final do dia um telefonema prometido já serviria como recompensa. Cada algarismo que o conta-quilómetros mudava dava renovada energia, por mais lento que fosse. Cada colega que passava parecia que nos dava um empurrão e cada um que me passava pensava que tinha que ir na roda dele para chegar ao fim mais depressa.
A ZA2 também não estava no quilómetro certo. Segundo a organização estaria aos 30 e fomos encontrá-la aos 37. Imediatamente antes o meu único engano no caminho, fui em frente, distraído, em vez de virar à esquerda. Uns berros de um grupo atrás acordaram-me e perdi só uns 60 metros. Na ZA2 havia rostos animados, o fim estava próximo, o pessoal dos 75 ainda estava a meio e esta era a sua primeira paragem “a sério”. Mais uma barrita de chocolate (já completamente derretida) e duas garrafas de água e lá vamos caminho da meta, ainda a rir com os modos de um velhote de Cuba que não se fartava de elogiar a sua terra, os seus companheiros, o seu Alentejo e a sua Maratona, que decorrerá em Junho, salvo erro. Os últimos quilómetros foram feitos como na parte inicial mas no sentido oposto. O sinal que indicava a meta a 1 Km parecia que nos injectava energia e eis-me de repente, a pedalar em pé na relação mais pesada à entrada de Alte. Os últimos 350 metros eram uma descida em asfalto onde atingi os 54 km/h e onde vi a minha vida toda à frente dos olhos à medida que via a curva a aproximar-se e eu sem curvar. Acho que deixei um rasto de pneu aí com uns 10 metros mas lá me safei. Havia de ter sido bonito, matar-me mesmo no fim e logo no alcatrão, quando tinha tido tantas e tão boas oportunidades com as pedras e as árvores do caminho. Cá em baixo a recompensa, muita gente de sorriso nos lábios a gritar "Força!" , "Parabéns!" ou pura e simplesmente a aplaudir enquanto cortava a meta. Aí, sinal de que realmente isto são coisas de, e para malucos: depois de passar nove décimos do tempo a amaldiçoar aquela terra, aquele percurso e quem o tinha feito, o primeiro pensamento que me passou pela cabeça foi “Tenho que fazer isto outra vez!”. À minha espera estava a minha mãe, a Balé e o Miguel, um puto que me perguntou 50 vezes por que estava na serra, por que caí, por que estava cheio de lama, por que só agora tinha chegado, por que isto, por que aquilo, enfim, por algum razão lhe chamam a idade dos porquês...
Tomado o banho (águinha bem quente por sinal, mais quente só no Alasca) e carregada a bike no carro vamos bater o almoço, uma churrascada, enquanto assistimos a uma demonstração de Trial e Dirt Jump. Visitam-se os standers das marcas e das lojas, trocam-se impressões, pedem-se informações e toca para casa, não sem antes dar uma mirada às fotos e comprar uma do Roma himself numa gáspia brutal direito a um sobreiro.
Se me pedirem para fazer as contas no final, digo-vos que é bastante simples:
Gasta-se: tempo, dinheiro (para doar), paciência, energia, muito suor, muito pneu e muito calço de travão.
Ganha-se: experiência, saúde, músculo, lava-se a vista (e não só com a paisagem, acreditem), uma bela churrascada, conhecimentos de mecânica, amizades, e um mega sorriso nos lábios, para além de um sono dos justos ao final do dia graças a 46.91km em 3:41:15 H de adrenalina pura! Ah, e as belas das cãibras também!
Agora digam-me vocês se, perante isto, vale ou não a pena por apenasmente 10 Euricos?
Para mim, Alte pode ser a segunda aldeia mais portuguesa de Portugal, mas é sem dúvida a mais BTTista. Um belo local para passear e visitar sem ser nestas andanças. Para o ano lá estarei para mais uma Maratona Marafada naquele local que é a tradução de Alto para al-garvio! Uma palavra de agradecimento e parabéns: a todos quantos trabalharam nesta bela organização, malta da Escola Profissional, voluntários, Cruz Vermelha, GNR, etc.; todos os habitantes de Alte, povoações e montes em redor por nos terem acolhido tão bem neste dia Feriado; a todos os BTTistas que participaram tornando este dia inesquecível (afinal foi a minha primeira Maratona e comecei em grande); e ao Bibes e à Sandrine que me fizeram companhia, sem eles não teria ido. AVÉ!