Há exactamente 20 anos atrás, no dia 10 de Maio de 1995, tinha eu 11 anos, recebi uma carta que mal sabia eu, iria influenciar a minha personalidade de uma maneira que nada até então o havia ainda feito.
Lembro-me perfeitamente dessa tarde. Estava em casa da minha avó, a almoçar com a minha família toda e, como de costume, assim que ouvi o carteiro colocar a correspondência na caixa do correio, levantei-me a correr (sempre fui um rapaz muito prestável) e lá fui buscar os envelopes à caixa de madeira do lado de dentro da porta. Não o fiz nesse dia de maneira diferente do que o fazia todos os dias. Era simplesmente um ritual que eu gostava de fazer, muito embora um rapaz de 11 anos não recebesse muita correspondência (ou nenhuma) e eu ter, na altura, a perfeita noção disso. Não estava à espera de correspondência para mim.
Mas nesse dia, no meio da publicidade, facturas e outras coisas, vinha um pequeno envelope com o meu nome no destinatário. Nome completo. Morada completa, código postal incluído. Sem remetente. O envelope era de correio aéreo e trazia colados 5 selos com uma cara conhecida. Não conhecida por muitos meninos de 11 anos, mas enfim, fui precoce em meia dúzia de coisas. Os selos tinham a efígie de Suharto, o presidente indonésio.
Não tive dúvidas do que se tratava. Mas também não sabia ao certo o que era. Agora, voltemos atrás no tempo.
No início do ano lectivo 94-95, o meu 6º ano, houve já não sei por iniciativa de quem, a "Campanha do Amigo Invisível". E de que se tratava esta campanha? Era tão somente uma manobra de publicidade e sensibilização para a situação política de Timor, em particular para a questão dos prisioneiros políticos ou "presos de consciência". Na altura a prof.ª Joana Caeiro explicou-nos em poucas palavras do que constava esta acção. O que se pretendia era "entupir" as caixas de correspondência das prisões indonésias onde estavam detidos prisioneiros políticos timorenses e chamar a atenção da comunidade internacional para a questão Maubere.
Agora relembro-vos a situação em 1995. O massacre do Cemitério de Santa Cruz ocorrera há já quase 4 anos. Passados pouco mais de 3 meses, em Março de 1992 o episódio do Lusitânia Expresso captara pela segunda vez num curto espaço de tempo o foco da imprensa internacional para a questão dos direitos humanos em Timor-Leste. Em Novembro desse mesmo ano, um ano após Santa Cruz, o líder da resistência timorense, Xanana Gusmão é capturado pelos invasores, e em Maio de 1993 é julgado e condenado a prisão perpétua, pena posteriormente comutada pelo próprio Suharto para 20 anos. Ainda na prisão, Xanana é condecorado pelo governo português com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, quiçá para disfarçar o mal que ficou na fotografia o MNE Durão Barroso com o correspondente Indonésio Ali Alatas enquanto brindavam com champagne a bordo de um avião o acordo alcançado sobre a exploração do petróleo do Mar de Timor.
Voltando às minhas aulas de português, foi-nos entregue uma lista com cerca de 20 nomes de prisioneiros. Alguns só tinham o nome e a prisão. O único que reconhecíamos era, efectivamente, o mais mediático: Xanana Gusmão, detido na cadeia de Cipinang. Ao passar os olhos pela lista lembro-me de pensar "E agora? A qual destes coitados vou eu escrever? Como decidir?". Agora, à distância, vejo claramente o cruel que foi esta escolha para mim e, no entanto, se há alturas em que as circunstâncias nos fazem acreditar na Providência, esta teria que ser uma delas. Acabei por escolher o nome que mais dados tinha. FRANCISCO MIRANDA BRANCO, 44 anos, casado, 7 filhos, condenado a 15 anos de prisão, detido em Semerang. Além disso, sempre gostei do nome Francisco. Decisões difíceis, lógicas simples.
Lá cumpri com os meus deveres escolares e cívicos nas próximas semanas. Ao ritmo de mais ou menos uma carta por mês, devo ter enviado meia dúzia de missivas para a Indonésia, em envelopes de correio aéreo, com um preço exorbitante de, salvo erro, 300 e qualquer coisa Escudos. Tal como havíamos sido informados, não esperávamos obter qualquer resposta, pois sabíamos da censura de que era alvo a correspondência vinda de Portugal. Passados todos estes anos, não me lembro do que escrevia. Porém lembro-me de ter tentado manter uma linha cronológica de uma carta para a seguinte ao mesmo tempo que fazia apresentações e referências como se fosse a primeira, não fosse ter sorte e a conversa ter alguma lógica.
Voltando ao dia 10 de Maio de 1995, a carta foi aberta ali mesmo, à mesa, e lida. Num português perfeito, numa caligrafia fina e elegante, Francisco Miranda Branco apresentava-se em três páginas e meia de um papel fininho. Juntava uma fotografia e um cravo espremido contra o papel (a carta era datada de 25 de Abril) e explicava no post-scriptum o método a utilizar futuramente: eu deveria enviar a minha correspondência para uma freira católica que por sua vez a faria chegar às suas mãos, na prisão. Um dos poucos direitos que tinham na reclusão era o de poderem ter assistência religiosa. Aparentemente fora assim que uma das minhas cartas lhe tinha ido parar às mãos: a freira interceptara-a ao reconhecer o nome e entregou-a ao destinatário. No final, um pedido. Livros. O homem queria livros. Sobretudo um dicionário de inglês, para o ajudar a escrever as suas respostas às cartas que recebia de todo o mundo, e que não eram censuradas como as nossas. Não foi preciso ler a carta duas vezes para percebermos que estávamos perante um homem extremamente inteligente, culto, e que embora preso, continuava a lutar e a ser em certa parte, livre.
Nos anos seguintes trocámos cerca de duas dezenas de cartas. Por vezes recebia-as através de intermediários, umas vezes da Suécia, outras de Inglaterra. Ainda troquei umas quantas cartas com o meu correspondente sueco. Nas suas o Francisco contava-nos o seu dia a dia de medo na prisão, nós descrevíamos os nossos esforços para a causa timorense. Trocámos contactos, actualizávamos informação, concertávamos acções mais ou menos simples tudo relacionado com essa arma tão importante: Informação.
Nessas missivas o Francisco descrevia os horrores de invasão indonésia. De como tinham feito campanhas de vacinação em Timor que mais não eram de métodos disfarçados para esterilizar mulheres, de como lançaram o rumor que alguém na prisão tinha instruções para os matar (havia mais timorenses detidos em Semerang), etc. Lembro-me de uma carta em que dizia que não descrevia tudo, nem ao pormenor, porque eu era apenas uma criança. Mas eu já tinha deixado de ser criança desde o dia 10 de Maio de 1995. Na altura fiquei indignado e confesso desiludido com o meu amigo "invisível".
Graças a esta iniciativa surgiram outras, na minha escola, da qual era Directora a minha mãe. O que hoje chamaríamos de spin offs. O meu professor de música fez uma música, agarrou nuns putos e fez um grupo que cantava por todo o lado sobre Timor e não só. Foram à televisão umas quantas vezes e lá iam levando a água ao nosso moinho. Em 1996, José Ramos Horta e D. Ximenes Belo são galardoados com o Nobel da Paz e eu, durante um jantar de homenagem ao bispo timorense em Évora, consigo dizer-lhe algumas palavras e mostrar-lhe algumas das cartas do Francisco. D. Ximenes agradeceu-me, sorrindo, e disse-me para nunca perder a esperança e continuar a ajudar o meu amigo Francisco. Se há momentos em que acreditamos que há homens santos e cuja aura quase podemos tactear, os poucos minutos que falei com D. Ximenes Belo são um deles. Por altura do referendo, em Agosto de '99, e dos difíceis meses da transição, no Redondo, já toda a gente estava sensibilizada para questão Maubere. Todos os pais com putos na escola já tinham frequentado ou participado num evento relacionado com Timor. Uma única carta provocou o efeito bola de neve. Houve inclusivamente uma outra aluna cujas cartas, uns anos depois das minhas, foram recebidas por um outro prisioneiro, mas que não teve a mesma frieza de espírito de lhe facultar uma nova morada e método de troca de correspondência.
Na prisão, o Francisco conseguiu arranjar um telemóvel. Ligávamos por vezes da escola e ele atendia. Relatava o que ouvia, ansioso acerca do seu futuro. Sabíamos que era uma questão de tempo até à libertação dos presos políticos mas, e se "acontecia" algo entretanto? Ana Gomes era na altura a liaison do governo português e facultava-nos a informação acerca dos desenvolvimentos dos processos de libertação dos presos políticos. (Tive há dias oportunidade de a encontrar no aeroporto e de trocar algumas palavras com ela, que recordou perfeitamente o nome do Francisco, da prisão e das circunstâncias da sua libertação) Na televisão assistíamos à invasão da sede da ONU, em directo, e às entrevistas que Sérgio Vieira de Mello ao som de tiros e de pessoas a pularem a rede para entrarem no recinto dos capacetes azuis.
Finalmente, e já não me recordo ao certo a data, recebemos a notícia de que o Francisco havia sido libertado e se encontrava já a caminho de Timor. Exultámos com a boa nova, é claro. Não fui mais que uma pequena peça na engrenagem, mas orgulho-me do pouco que consegui fazer. Espero um dia poder compensar aquilo que não consegui fazer por Timor.
Passados uns meses, o Francisco veio a Portugal, onde tinha a parte da família exilada. Conheci-o à porta do apartamento onde vivia o seu pai, quando o fomos buscar para conhecer a minha terra. Cumprimentámo-nos como se nos conhecêssemos desde sempre e nos tivéssemos visto ontem. Esteve no Redondo, demos entrevistas para a RTP, participámos em conferências. Lembro-me de o meu pai lhe agradecer, em lágrimas, o que tinha feito pelo seu filho, eu, numa conferência que teve lugar na biblioteca do Redondo. Depois disso tivemos contacto esporádico, através de um militar do Redondo que esteve na UNAMET e de uma professora que esteve lá.
Desde há muitos anos, ainda com o meu amigo preso, decidi que um dia que seja pai, o meu filho chamar-se-á Francisco. Entretanto o meu irmão antecipou-se e baptizou o meu sobrinho de Francisco. Entretanto o próprio Papa escolheu ser Francisco. Mas não faz mal.
Há duas semanas atrás, e após ter tentado várias vezes sem sucesso reatar o contacto com o meu amigo Francisco, eis que finalmente o achei no Facebook.
Agora sim, poderemos por a conversa em dia.
Em 1512 os Portugueses chegaram a Timor.
Em 1975 deixámos abandonados à sua sorte um povo desamparado.
A 30 de Agosto de 1999 os timorenses escolheram ser independentes.
A 22 de Setembro do mesmo ano forças australianas invadem o território para controlar as milícias pró-indonésias, que espalhavam o caos, matavam e pilhavam indiscriminadamente.
A 19 de Outubro de 1999 o governo indonésio aceitava os resultados do referendo.
A 20 de Maio de 2002 Timor-Leste torna-se no 191º Estado Independente, e no 8º País de Língua Oficial Portuguesa.
E daqui por uns tempos, é garantido que verão este vosso amigo por Timor-Lorosae.
2 comentários:
Cada vez gosto mais de ti....num sentido profundo e Humano!!!
Alentejano d'um raio!
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