Neste dia de 12 de Novembro, foi com grande tristeza que notei em todos os meios de comunicação social para onde olhei, a ausência de referências a uma das datas mais tristes da História: 12/11/1991! Se bem se lembram, passaram já 14 anos desde este bárbaro episódio protagonizado pelas poderosas e fortemente armadas forças de intervenção de uma nação ilegitimamente invasora, a Indonésia, e por algumas centenas de civis, na sua maioria jovens de uma nação não reconhecida (Timor Leste), que contra tudo e todos, tentavam preservar a sua identidade e, mais que isso, a esperança num futuro livre e independente. Chamaram a este "incidente" Massacre de Santa Cruz. Por essa altura tinha eu sete aninhos, a caminho dos oito, uma idade que ainda não me permitia opinar sobre certas coisas (pelo menos com o mesmo discernimento e maturidade que tenho agora, ou não... ) mas em que se ficam marcadas certas memórias para o resto da nossa vida, como esta. Nunca mais me esqueci das imagens divulgadas, não tenho pela sua dureza, sangue, etc., mas mais pelas circunstâncias: num cemitério? Civis indefesos? Por causa de uma inocente manifestação? Na minha ainda pouco desenvolvida escala de valores esta cena ficou marcada no mais fundo possível.
Fui crescendo, sem nunca ser activista dos Direitos Humanos, mas, e em contrapartida, sem nunca ignorar os semelhantes "desastres" que iam acontecendo mundo fora tais como os do Ruanda, Borundi, Somália, Israel-Palestina, Birmânia, etc., com especial destaque para o do povo Maubere. Em finais de 1994, a caminho dos 11 anos e a frequentar o 6º ano, acontece o que iria influenciar para sempre a minha vida, especialmente a minha formação cívica e convicções ideológicas: nas aulas de Português somos "convidados" a escrever cartas a prisioneiros políticos Timorenses, numa manobra a nível nacional para pressionar o governo Indonésio e chamar a atenção da comunidade internacional para as condições a que estes eram sujeitos. A minha professora de português na altura era a Prof. Joana Caeiro e lembro-me como se fosse hoje, de nos entregar um papel com uma lista de cerca de 50 nomes de prisioneiros políticos timorenses, dos quais deveríamos escolher um para nos correspondermos; lembro-me também de nessa lista estar o único nome que reconhecia: Xanana Gusmão, líder da resistência armada (FALINTIL - Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste) detido em 1993, encarcerado na penitenciária de Cipinang. Passei os olhos pelo dito papel e escolhi o nome ao qual vinham associados mais dados: Francisco Miranda Branco, idade, pena, filhos e pouco mais, detido em Semerang, dos outros poucos mais se sabia para além do nome e do local de encarceramento. O assunto da escrita era do nosso critério, entre Outubro de 94 e Fevereiro de 95 escrevi 5 cartas para o mesmo destinatário, falando dos mais diversos assuntos, confesso que já não me lembro de nenhum, e sem ter um pingo de esperança de receber qualquer resposta, plenamente consciente que provavelmente nenhuma das minhas cartas cumpriria o seu propósito primário: chegar ao seu destinatário. Afinal, os prisioneiros timorenses recebiam correspondência de todo o mundo excepto de Portugal, dos PALOP e do Brasil.
A 10 de Maio de 1995, mais de 6 meses depois desta campanha, recebo em casa uma carta sem remetente, num envelope de correio aéreo e com selos com uma cara bem familiar: Suharto, o ditador indonésio no poder. Fiquei sem saber o que pensar, nem me passou pela cabeça que pudesse ser uma resposta às minhas cartas, mais depressa um aviso ou ameaça para parar com a correspondência. E não era, era a resposta a uma e só uma das minhas cartas, e o remetente era precisamente o meu destinatário! Excitadíssimo, li com as mãos a tremer uma curta carta escrita com uma letra minúscula, fluída mas perfeitamente legível num português correctíssimo. Nela o meu correspondente apresentava-se, contava alguns aspectos da sua vida pessoal entre os quais o número de filhos, 7!, e relatava a sua condição actual, por fim e sem "perdas de tempo" designou uma nova morada para a qual eu deveria remeter a próxima correspondência e pediu-me um dicionário de Portuguê-Inglês/Inglês-Português para imediatamente poder dar resposta às milhares de cartas que recebia numa língua que não compreendia.
E assim foi até 1999, ano do referendo e das acções terroristas das milícias pró-Indonésia. Durante 4 anos, remeti as cartas ao cuidado da Sra. Karitas Pi, uma freira católica Indonésia que prestava assistência religiosa aos prisioneiros e que passou a fazer de intermediária, afinal tinha sido ela a "sacar" a primeira carta. Nesse período, sempre com a ajuda da Prof. Joana Caeiro e dos meus pais, também eles professores, mantive um estreito contacto (ler o mais frequente e discreto possível) com aquele a quem imediatamente passei a chamar de amigo, Francisco Miranda Branco. Através da escola, este contacto desencadeou uma série de acções que anteciparam em muito, pelo menos nas gentes da minha terra, a onda de solidariedade de Setembro de '99 quando todo o país se uniu para mostrar ao mundo que a vontade do povo Maubere era para ser ouvida e acima de tudo respeitada. Contam-se entre essas iniciativas a gravação de um CD com temas pedagógicos tais como os DH, ambiente, toxicodependência, etc., sessões de esclarecimento com sobreviventes do dito massacre, participação em talk-shows na TV e na Rádio com o propósito de contar a história e sensibilizar o público e, de todas a que a mim me deu mais prazer, a inscrição no jantar de homenagem ao Nobel da Paz D. Ximenes Belo, em Évora, com quem tive a honra e o prazer de trocar algumas palavras.
Hoje o mundo pode saber; Francisco Miranda Branco, condenado a 15 anos de prisão sem recurso, foi um dos organizadores do funeral que deu origem à manifestação de 12/11 que por sua vez deu origem ao Massacre do Cemitério de Santa Cruz. Nesse funeral ia a enterrar um jovem de nome Samuel, assassinado pela polícia indonésia uns dias antes, afinal era só mais um... Francisco passou 9 anos na penitenciária de Semerang, foi libertado e retomou o seu lugar na construção de uma democracia no mais recente país do mundo, cujo dono é um Povo finalmente livre, desde a chegada dos primeiros portugueses há 5 séculos atrás. Francisco Miranda Branco é hoje profissionalmente deputado democraticamente eleito na Assembleia Nacional timorense, para muitas ONG's como a Cruz Vermelha e a Amnistia Internacional a sua liberdade é uma meta alcançada e uma rampa de lançamento para as lutas permanentes na defesa dos Direitos Humanos dos mais fracos, para muitos portugueses é "aquele senhor timorense que tá preso com quem aquele jovem se corresponde" e para mim, um amigo para a vida, que muito me ensinou sobre ela.
Passados 14 anos, preferia que não tivesse havido razões para a História cruzar as nossas vidas... infeliz aniversário.